Verification: 1b7a2f80a75f2be1 Verificação: 2b3722ae526818ec
top of page

Promising Young Woman (Bela Vingança): Psicanálise do Trauma e Vingança

Atualizado: há 6 horas

Promising Young Woman (Bela Vingança): Psicanálise do Trauma e Vingança
Promising Young Woman (Bela Vingança): Psicanálise do Trauma e Vingança

O Espelho Estilhaçado da Justiça Implícita

A experiência de imergir em "Bela Vingança" é daquelas que nos roubam o fôlego, um soco no estômago que dói por muito tempo depois dos créditos finais. É como se, de repente, uma lente de aumento implacável fosse colocada sobre a nossa sociedade, expondo em detalhes microscópicos as micro e macro-agressões cotidianas, os comentários aparentemente inofensivos e os comportamentos tóxicos que, em sua aparente insignificância, constroem e perpetuam a violência de gênero em escala alarmante. Vemos isso com extrema frequência nos noticiários. A cortina se rasga, somos forçados a enxergar o que sempre esteve ali, à vista de todos, mas convenientemente ignorado. O que vemos não é um retrato individual, nem a história de Cassandra Thomas, a protagonista em busca de redenção. O que se manifesta são os pedaços espalhados de uma estrutura social doente, carcomida por dentro, que clama por revisão. Emerald Fennell, com uma direção que beira a perfeição, nos entrega uma obra espetacular, distante da narrativa da vingança, tão comum no cinema hollywoodiano, com suas cenas de ação e a promessa vazia de um final feliz. Em vez disso, aponta com crueldade nossas falhas sociais, lançando o espectador numa discussão incômoda, acima de tudo, necessária sobre a busca por justiça, não aquela que se encontra nas instâncias dos tribunais, senão, a que reside no âmago da psique, no plano simbólico do reconhecimento da dor alheia e na árdua e frustrante tentativa de reparar o irreparável, de curar as chagas que a sociedade se esforça tanto em esconder.

Desforra Psíquica e o Questionamento da Cumplicidade: O Constrangimento da Verdade em Bela Vingança.
Desforra Psíquica e o Questionamento da Cumplicidade: O Constrangimento da Verdade em Bela Vingança.

''Quando o trauma cala a história, o símbolo sussurra o que a realidade tentou sepultar no silêncio dos cúmplices.'' - Dan Mena


Cassie, a personagem central, personifica essa busca. Ela está presa em um ciclo vicioso, paralisada por um trauma que a consome, mesmo não sendo o dela. Ela assume essa dor como uma missão pessoal, uma cruz que carrega com resignação e autodestruição. Sua narrativa se desenrola como um luto interminável, uma fenda que se recusa a cicatrizar, pois o sistema que a causou se mantém inerte, negando a existência da própria ferida. Explorar "Bela Vingança" é ir além da crítica convencional, para não ser mais um. Quero desmantelar as nuances da culpa, essa que deveria assombrar os agressores quanto a sua internalização, aquela que se manifesta em sintomas, em padrões repetitivos, por fim, em um destino implacável. Cassie não busca apenas a punição dos culpados, ela anseia por algo muito mais desordenado: a validação da sua angústia, o reconhecimento do seu sofrimento.


Se coloca em situações de risco, simulando vulnerabilidade, para confrontar homens aparentemente respeitáveis com a sua própria sombra, como o predador que se esconde por trás de sua fachada de normalidade. O que ofereço aos meu leitores(as) não é simplesmente uma crítica cinematográfica, gosto de pensar numa psicanálise cultural, um exame clínico da sociedade, algo que possa devolver ao filme aquilo que ele tem de mais incômodo, sua recusa em ser domesticado.

O Impacto Social de Promising Young Woman: Um Documento Cultural sobre a Mudança de Paradigmas.

Meu texto, pretende humildemente devolver ao filme a dimensão da cura que a obra, por sua natureza trágica, não pode oferecer. Vamos em frente. Cada um desses encontros representa um ato de resistência, uma tentativa desesperada de suturar uma sociedade que banaliza a hostilidade de gênero e silencia suas vítimas. Vou avaliar como o filme subverte o gênero "rape and revenge", (estupro e vingança) o transformando em um estudo perspicaz sobre a memória traumática e a busca por justiça em um mundo onde se calar é interpretado como consentimento, e o poder, sinônimo de impunidade. Mostrar como a vida de Cassie é uma tentativa inquieta de ressignificar o passado, de dar voz a quem foi silenciado e confrontar assim o universo com a realidade brutal que se esforça para ignorar.


''A ausência de culpa é o veneno social que transforma homens comuns em arquitetos da própria impunidade.'' - Dan Mena

O Caso de “E.”, Um Estudo Analítico de Justiça Interior

Entre os inúmeros casos clínicos que atravessam minha prática e poderiam se encaixar sobre a trajetória de Cassie no filme, há um que aparece de modo particular e sensível, capaz de afinar a escuta para o drama subterrâneo de ‘’Promising Young Woman’’ - (Bela Vingança). Vou chamar essa paciente de ‘’E’’., uma jovem de trinta e um anos, cuja história se desdobrou ao longo do tempo, impregnado por um acontecimento que não lhe pertencia, mas que a definia por dentro de alguma forma.


‘’E’’, não buscou análise por um sintoma clássico. Chegou a consulta tomada por uma sensação nebulosa de suspensão, como se a habitasse uma vida emprestada, uma existência marcada por um trauma que não fora vivido por ela diretamente, mas que era vivido como se seu fosse. Sua melhor amiga fora vítima de violência sexual na adolescência e nunca encontrou amparo familiar, institucional ou social. O silêncio que se seguiu a esse episódio se transformou numa espécie de criptografia psíquica. Ao contar e se depositar no corpo de ‘’E’’., ela se tornou guardiã involuntária de um segredo que não era próprio, mas que a possuía.

A Tutela das Instituições: Como o Sistema Jurídico Valoriza o Futuro do Agressor.
A Tutela das Instituições: Como o Sistema Jurídico Valoriza o Futuro do Agressor.

No percurso analítico, identifiquei em ‘’E’’, uma forma sofisticada da compulsão à repetição, não ao retorno do seu trauma, mas do alheio, introjetado como missão ética e afetiva. Se estabeleceu nesse laço uma confusão de linguagens, na qual o amor pela amiga se converteu em identificação. Talvez, eu reconhecesse ali a tentativa de reparar o objeto interno ferido, um ‘’falso self moralizado’’, erguido para sustentar um mundo que falhara com alguém que ela amava. Essa leitura também se movia no eixo para tamponar o furo simbólico deixado pela impotência do discurso social. Certamente ‘’E’’, adotou uma postura arquetípica da ‘’justiceira ferida’’, uma ‘’Atena’’ deslocada para o século XXI. Quando menciono Atena, não o faço apenas como referência mitológica, mas como evocação simbólica que atravessa os séculos. A deusa que já nasce armada, filha da cabeça de Zeus, isto é, uma entidade cuja origem não é o ventre, mas o pensamento, a estratégia, a razão convertida em ‘’potência defensiva’’. Em inúmeras passagens, ela aparece como guardiã da justiça, mas uma lei que raramente se confunde com a compaixão. Uma razão psíquica estruturante, que intervém quando a ordem simbólica se rompe.


Nesse sentido, ‘’E’’ encarnou uma versão atual dessa figura, uma Atena moderna, embora sem armadura de bronze, mas movida por um senso interno de responsabilidade, carregando a espada não para ferir, mas para recompor. Sua postura não era heroica, mas sintomática, tentando corrigir o desequilíbrio ético que sua amiga nunca pôde dar nome, respondendo a um chamado que se alojou nela como missão involuntária. Assim, ‘’E’’ transformou a dor alheia em matéria moral, se tornando essa personagem ferida, não aquela que triunfa, mas, que eleva o peso do que deveria ser justo.


Esse enigma, como mensagem traumática não decifrada pela amiga, buscou outra casa, e encontrou em ‘’E’’, um corpo disponível para lhe acolher. Por isso sempre insisto em falar, que o trauma das pessoas, na maioria dos casos, é uma história contada tarde demais, quando já encontrou múltiplos hospedeiros.

Violência de Gênero em Filmes: A Inconveniência da Verdade e o Conforto do Silêncio.
Violência de Gênero em Filmes: A Inconveniência da Verdade e o Conforto do Silêncio.

Ao longo da análise, ‘’E’’. me conta um ponto relevante, sua dor só teria sentido se pudesse se oferecer como gesto de restauração simbólica. Logo, ela não buscava vingança, mas um testemunho. Desejava, antes de tudo, que o mundo escutasse. Quando pôde nomear esse desejo não para agir, mas para existir, algo se deslocou. Não houve “cura”, mas ''descompressão do fardo'', um alívio que surge quando a verdade finalmente encontra sua integração e linguagem.


Portanto, espremo, Cassie (no filme), não teve essa passagem. Ela não buscou apoteose, senão legibilidade. Enquanto "É'', minha paciente, encontrou na palavra o seu ponto de retorno, por outra perspectiva ela encontra na morte seu marco de inscrição. A primeira sublima, a segunda denuncia. A primeira elabora; a segunda acusa. Destarte, ambas manifestam o mesmo princípio, há traumas que não pertencem a um indivíduo, mas a um campo subjetivo inteiro, e exigem, de algum modo, serem ouvidos para pacificar a alma.

A Arquitetura da Reiteração: O Trauma como Fado e Liturgia

A existência de Cassandra Thomas é um eterno retorno. Ela abandonou a faculdade de medicina, trabalha numa cafeteria e mora com seus pais, vive uma espécie de adolescência cristalizada. Essa estagnação não denota apatia, mas sim um sintoma eloquente. Em termos psicológicos, Cassie se encontra fixada no momento do trauma de sua amiga, Nina. A repetição de seus expedientes noturnos, simular embriaguez para desvelar a índole verdadeira dos "bons rapazes", não é uma busca por prazer ou mesmo por uma desforra. É uma compulsão à repetição, um construto freudiano que descreve o ímpeto inconsciente de reviver vivências dolorosas na tentativa de as dominar. Cada indivíduo que ela confronta é um substituto, um ‘’stand-in’’ para o agressor original e para todos os que foram cúmplices em seu mutismo.

Exegese Metapsicológica de Bela Vingança: A Subversão da Vingança Tradicional.
Exegese Metapsicológica de Bela Vingança: A Subversão da Vingança Tradicional.

O ritual de Cassie é meticulosamente urdido. A maquiagem desfeita, o corpo inerte, a súbita sobriedade, tudo é uma encenação calculada para romper a quarta parede da negação masculina. Ela não os agride fisicamente, sua arma é a gnose. Ao registrar cada conquista em seu diário, ela não está colecionando troféus, mas sim, erigindo um dossiê pessoal contra a omissão. Este ato de catalogação é um esforço para impor ordem ao caos do seu trauma, de transubstanciar a dor amorfa em dados concretos. Essa reiteração, funciona como uma liturgia profana, um empenho desesperado para alcançar uma reparação simbólica que a jurisdição formal jamais lhe poderia propiciar. Ela repete para não esquecer, mas, paradoxalmente, esse mesmo retorno a impede de progredir, aprisionada num ciclo de imobilidade. ''O corpo feminino, tantas vezes objetificado, se torna aqui a arma que desmascara a sombra escondida por trás da virtude performada.'' - Dan Mena

Será que a iteração de um trauma, ainda que de forma controlada, pode de fato conduzir à convalescença, ou apenas aumenta a mágoa primordial? Até que ponto um ato simbólico pode suprir a ausência de uma equidade real e palpável?

"A alma não busca retaliação, mas anseia suscitar no outro o reconhecimento da dor que a silenciou, na esperança de que, um dia, o mutismo cesse de clamar." - Dan Mena

Trauma Sexual e Reparação: A Conexão entre a Memória Traumática e a Cinematografia.
Trauma Sexual e Reparação: A Conexão entre a Memória Traumática e a Cinematografia.

A Mecânica da Culpa, do Negacionismo à Projeção

O filme Bela Vingança constitui um estudo exímio sobre as múltiplas facetas da culpa. A mais conspícua é a sua ausência nos algozes e coadjuvantes. O jurisconsulto, o reitor da universidade, as antigas companheiras de classe, todos(as), arquitetam historinhas auto-indulgentes para se eximir de responsabilidade. "Era um tempo diferente", "ela estava bêbada", "precisamos proteger o futuro de jovens promissores". Essas afirmações são meros mecanismos de defesa psíquicos, racionalizações que sustentam uma base de poder e impunidade. A engrenagem da culpa na obra opera por deslocamento e denegação. A insuportável culpabilidade para o sistema, é lançada na vítima: ‘’ela arruinou a própria vida, ela estava querendo isso’’. ''A reparação simbólica é o gesto que tenta religar o que o trauma partiu, mesmo que jamais restaure o que foi perdido.'' - Dan Mena Cassie, por sua vez, se torna o receptáculo desse sentimento repudiado. Ela carrega o ônus não apenas da violência sofrida por Nina, mas da inação de todos. Sua incumbência é uma tentativa de forçar a restituição dessa autoria aos seus legítimos detentores. Ao confrontar a reitora (Connie Britton), ela não a acusa de um delito, mas de uma falha moral. A argúcia reside em demonstrar que a violência não se finda no ato em si, mas se perpetua na teia de cumplicidade que a encobre. Numa perspectiva kleiniana, é fundamental a capacidade de reparação. Sem a experiência da culpa, inexiste a possibilidade de reparar o dano infligido. Os personagens que Cassie confronta são inaptos a sentir essa sensatez genuína, pois isso abalaria os pilares de suas identidades e privilégios. A odisseia de Cassie é, portanto, uma tentativa de induzir a culpa para que a reparação, ainda que tardia e simbólica, possa ser deflagrada.

Quando a culpa não é sentida pelo opressor, para onde ela se desloca? Pode a vítima, ou alguém que a represente, suportar esse fardo sem se aniquilar no processo?

"A ausência de culpa no opressor não anula o débito; apenas o transfere para a consciência, que se torna coadjuvante pelo silêncio." - Dan Mena

A Desforra Psíquica e a Subversão do Feminino Arquetípico

O filme desconstrói de modo brilhante o arquétipo da vingadora. Cassie não se arma com pistolas e espadas, suas armas são a inteligência, a elocução e o próprio corpo colocado como isca e instrumento de equidade. Sua feminilidade é uma fantasia performática, os trajes em tons pastéis, as unhas policromáticas, o cabelo loiro e comprido. Essa estética que evoca uma inocência adolescente, estabelece um contraste lancinante com a obscuridade da sua missão. É uma subversão do cânone e das expectativas sociais sobre a mulher. Ela utiliza os estereótipos de fragilidade e doçura como uma camuflagem para sua fúria contida e sua mente estratégica. Esse desterro psíquico é mais sutil e, quiçá, mais devastador do que a violência física. Cassie não deseja tirar a vida dos homens que encontra; ela pretende aniquilar a certeza de sua inocência. Quer plantar uma semente de dúvida, um desconforto perene que os assombre sempre que lembrarem de uma mulher vulnerável.

Psicologia Social do Abuso: A Responsabilidade Coletiva na Perpetuação da Violência.
Psicologia Social do Abuso: A Responsabilidade Coletiva na Perpetuação da Violência.

''A culpa só produz reparação quando reconhecida; até lá, permanece um fardo lançado sobre o corpo errado.'' Dan Mena A cena com Ryan (Bo Burnham), que parece ser a promessa de uma eclosão desse ciclo, é substancial. Ele representa o bom moço por excelência, mas sua ligação com o trauma primordial expõe a linha frágil entre o bem e o mal, e que a cumplicidade passiva é, em si, uma modalidade de atentado. A desilusão com Ryan é o golpe derradeiro que solidifica sua convicção de que a metamorfose não virá da redenção masculina, mas de um ato de sacrifício que force uma ruptura no sistema.

Ao empregar a própria feminilidade como instrumento, Cassie está se fortalecendo, ainda que ironicamente diante dos moldes que a sociedade utiliza para subjugar? É factível uma represália puramente psíquica sem que ela contamine e destrua o retalhador?

"A retaliação mais potente não é aquela que destrói o corpo do outro, mas a que implode a narrativa que sustenta sua isenção." - Dan Mena

Reparação Simbólica como Ato Consumado

O clímax de Bela Vingança é um dos mais debatidos e polarizados da cinematografia recente. O óbito de Cassie não é uma capitulação, mas o apogeu de sua estratégia de restauro. Ao se travestir de enfermeira, uma figura de zelo e convalescença e confrontar o carrasco, Al Monroe, em sua despedida de solteiro, ela detona no santuário da masculinidade tóxica. Sua intenção não era o homicídio, mas a estigmatização, se inscrever em seu corpo com o nome de Nina, tornando a memória viva da vítima indelével. Era um batismo de culpa, uma tentativa de compelir o agressor a portar fisicamente o peso de seu delito. ''O trauma não marca apenas o passado de alguém, ele redesenha o futuro com linhas que o sujeito não escolheu.'' - Dan Mena

O Questionamento da Cumplicidade: A Audiência Confrontada pela Narrativa de Bela Vingança.
O Questionamento da Cumplicidade: A Audiência Confrontada pela Narrativa de Bela Vingança.

O plano fracassa em sua execução, mas triunfa em seu desígnio. A morte de Cassie é prevista por ela como uma possibilidade concreta, é o ato final que assegura que a verdade apareça. As mensagens programadas, as provas remetidas, a localização de seu cadáver, tudo compõe um testamento previamente elaborado. Ela se sacrifica para que a justiça, ainda que póstuma, seja estabelecida. Em termos psicológicos, seu suicídio simbólico (que se torna literal) é a única via que ela encontra para romper a compulsão à reiteração e conferir um significado final à sua dor e à de Nina. Ela se torna o veneno e o antídoto. Seu falecimento não é um epílogo, mas uma transmissão. Delega de alguma forma o bastão da responsabilidade ao sistema legal, o forçando a agir. É a reparação última, se não se pode restabelecer o passado, se pode garantir que ele não seja esquecido e que gere consequências reais no presente.

O custo de uma vida pode ser considerado um ato de ajuste válido, ou é a expressão máxima do desespero? Ao planejar a própria morte como peça central de sua retaliação, Cassie alcança a igualdade ou apenas perpetua o ciclo de violência, se voltando contra si mesma?

"Por vezes, a única forma de reparar um mutismo ensurdecedor é reconfigurar seu grito, ainda que custe a própria voz." - Dan Mena

O Perfil Psicológico dos Protagonistas

Cassandra "Cassie" Thomas (Carey Mulligan): é a personificação do trauma vicioso e do luto congelado. Sua identidade psíquica está amarrada à de Nina. Ela opera sob o domínio do que Freud denominou pulsão de morte, não no sentido de um desejo literal de morrer (embora isso se concretize), mas como uma força que busca desmantelar estruturas, dissolver tensões e retornar a um estado de quietude que foi subtraída de sua amiga. Seu perfil é o de uma justiceira, cuja audácia fulgurante e potencial foram sequestrados por uma missão reparadora. Ela padece de uma forma de estresse pós-traumático, vivendo em um estado de hipervigilância e dissociação. Sua aparente tranquilidade é uma couraça contra a dor avassaladora que carrega. ''A justiça simbólica, quando negada no mundo externo, busca abrigo no inconsciente, onde se torna a liturgia de resistência.'' - Dan Mena

Ryan Cooper (Bo Burnham): Ryan é o tipo do "nem todo homem". Ele é cativante, espirituoso, aparentemente sensível e representa a promessa de normalidade e convalescença para Cassie. Psicologicamente, ele funciona como um objeto de teste. Sua falha em reconhecer a gravidade do acontecido e sua participação, ainda que passiva, no coro dos que duvidaram de Nina, o desmascaram. Ele não é um monstro, e essa é a questão, ele é a representação da cumplicidade medíocre, do homem fraco, que, por conveniência opta por não ver, não ouvir e não agir, se tornando um pilar silente do sistema. ''Há monstros que gritam, mas os mais perigosos são os que sorriem, certos de que o mundo protegerá seus segredos.'' - Dan Mena

Al Monroe (Chris Lowell): Al é o predador narcísico. Ele encapsula o privilégio masculino em sua forma mais deletéria. Sua completa ausência de remorso não é apenas sociopatia, é o produto de uma cultura que o assegura de sua impunidade. Para ele, o estupro de Nina não foi um evento traumático, mas um deslize juvenil, um pormenor em sua trajetória de sucesso. Seu perfil psicológico é marcado por uma denegação patológica e uma inaptidão para a empatia. Ele não percebe suas vítimas como iguais, mas como objetos para sua gratificação, descartáveis e efêmeros. Ele é o mal que não se reconhece como tal, o que o torna ainda mais perigoso. ''A ética não se resume a leis, mas ao rosto que encaramos quando a verdade se impõe.'' - Dan Mena

Como a presença de personagens como Ryan pode ser mais insidiosa para a psique da vítima do que a malignidade explícita de um algoz? A identidade de Cassie é uma construção autêntica ou apenas um reflexo do trauma de Nina?

"O monstro mais difícil de combater não é aquele que ruge na escuridão, mas aquele que sorri à luz do dia, convicto de sua própria virtude." - Dan Mena

O Impacto Social e a Relevância Contemporânea

Enxergo neste filme um documento cultural, um sismógrafo que registra os tremores de uma mudança de paradigmas. A obra dialoga muito diretamente com as discussões sobre cultura do estupro, aquiescência e a responsabilidade coletiva na perpetuação da violência de gênero. O filme apresenta a fragilidade do discurso que advoga para auscultar as vítimas, demonstrando como, na práxis, a dúvida, a culpabilização e a tutela das instituições ainda prevalecem. Vejo em Cassie um exemplo da frustração de inúmeras mulheres que viram suas denúncias serem desacreditadas ou minimizadas.

A relevância do filme está em sua intrepidez de apontar o dedo não apenas para os delinquentes, mas para o ecossistema que permite que eles prosperem. Está tudo incluso, o sistema educacional, o jurídico e a própria estrutura social que valoriza mais o futuro de um jovem talento do que a existência de uma mulher. A estética pop e a trilha sonora contagiante, uma versão sinistra de "Toxic" de Britney Spears, funcionam como um Cavalo de Tróia, nos atraindo com uma embalagem sedutora para entregar uma mensagem dura e devastadora.

A Estética Pop como Cavalo de Tróia: Subversão de Gênero e a Crítica à Aquiescência Social.
A Estética Pop como Cavalo de Tróia: Subversão de Gênero e a Crítica à Aquiescência Social.

O filme de certa forma constrange, quando questiona alguma cumplicidade. Quantas vezes já sorrimos de uma piada misógina? Ou duvidamos de uma vítima? Quantas vezes alguns preferem o conforto do silêncio à inconveniência da verdade? De que maneira a estética pop e o humor cáustico do filme potencializam ou diminuem o impacto de sua mensagem sobre a violência sexual? Pode uma obra de ficção realmente provocar uma alteração social, ou apenas colocar a amostra de ansiedades deste tempo?

"A cultura é o solo onde a violência lança raízes. Para a extirpar, não basta podar os ramos; é imperioso revolver a gleba que a nutre." - Dan Mena

A Cicatriz que se Converte em Cartografia

O que fica de Promising Young Woman? Subsiste a imagem de uma mulher que modificou sua dor e dissecou a hipocrisia de uma sociedade. Cassie Thomas não é uma heroína no sentido clássico. Ela é uma figura trágica, uma mártir moderna cuja única saída foi a imolação. Sua história nos deixa com um sabor amargo, uma mescla de admiração por sua bravura e uma melancolia por seu martírio. ''Toda topografia emocional nasce de uma ferida, mas só a interpretação transforma esse território em rota.'' - Dan Mena Ela nos recorda que a busca por justiça em um mundo iníquo possui um custo psíquico incomensurável. A reparação que Cassie almeja e, de certa forma, alcança, não é a convalescença. A ferida de Nina, e a sua própria, jamais se apagará. Mas, seu ato é uma cartografia, um mapa real que desnuda as rotas do coleguismo, que assinala os sítios da denegação e que aponta para a gênese da violência. O passado para alguns persiste, não como uma âncora paralisante, mas como um farol que ilumina o presente, assegurando que as lições aprendidas não se percam na névoa do tempo. Deixo a sala, não aliviado pela crença vaga de uma resolução, mas sim com a clareza dolorosa das fissuras do sistema. A verdadeira reparação não reside na ilusão de um ponto final, mas no despertar da consciência. É um chamado à ação, um imperativo moral que nos impele a confrontar a fragmentação distorcida da sociedade. ''A cicatriz é a primeira forma de escrita que o corpo produz, um texto marcado em carne aguardando leitura.'' - Dan Mena

Psicologia Social do Abuso: A Responsabilidade Coletiva na Perpetuação da Violência.
Psicologia Social do Abuso: A Responsabilidade Coletiva na Perpetuação da Violência.

FAQ (Perguntas Frequentes)

Qual a principal abordagem psicológica do filme Bela Vingança? A exegese foca na reparação simbólica e na mecânica da culpa, explorando como a protagonista lida com um trauma vicário através da compulsão à reiteração.

O que é reparação simbólica no contexto do filme? É a tentativa de Cassie de obter equidade e validação para sua amiga falecida por meio de atos que desvelam a culpa dos algozes e coadjuvantes, em vez de buscar uma punição legal direta.

Como Bela Vingança aborda o trauma sexual? O filme explora as consequências psicológicas duradouras do trauma, não na vítima direta, mas em alguém próximo, demonstrando como a dor e o luto podem cristalizar uma vida e motivar uma busca por equidade.

Qual o papel da culpa no filme? A culpa é basilar, especialmente sua ausência nos algozes e sua projeção para a protagonista, que se torna portadora do sofrimento e da responsabilidade de expor a verdade.

Cassie, a protagonista, pode ser considerada uma heroína? Ela é uma anti-heroína ou uma figura trágica. Suas ações são moralmente ambíguas e sua odisseia culmina em sacrifício, questionando o conceito tradicional de heroísmo.

O que significa a "desforra psíquica" em Promising Young Woman? Significa que a retaliação de Cassie visa o psiquismo dos homens, buscando aniquilar sua autoimagem de "bons rapazes" e implantar uma semente de culpa, em vez de causar dano físico.

Qual a importância do epílogo do filme? O final sacrificial de Cassie, embora trágico, é o ato que assegura que a equidade seja alcançada, transmutando seu óbito em uma prova irrefutável e compelindo o sistema à ação.

Como o filme critica a cultura do estupro? Ele critica ao expor como a sociedade, por meio de suas instituições e indivíduos, tutela algozes, desacredita vítimas e perpetua um ciclo de violência pela denegação e cumplicidade.

Qual o perfil psicológico de Cassie? Cassie exibe sintomas de trauma complexo e luto não resolvido, operando em um modo de compulsão à reiteração e utilizando a dissociação como mecanismo de defesa para executar sua incumbência.

O filme oferece uma visão otimista sobre a justiça? Não, o filme é pessimista, sugerindo que a equidade real é quase inatingível e que, por vezes, requer um sacrifício extremo para forçar uma responsabilização mínima.

Por que o filme usa uma estética pop e colorida? A estética estabelece um contraste irônico com a temática sombria, funcionando como um cavalo de Tróia para atrair o público e entregar uma mensagem socialmente potente e perturbadora.

Qual a relação do filme com o movimento #MeToo? O filme é um ato direto e uma crítica contundente das questões suscitadas pelo #MeToo, como aquiescência, credibilidade da vítima e a cumplicidade sistêmica.

O que o personagem Ryan representa? Ryan representa o "homem probo" cuja passividade e denegação o tornam coadjuvante do sistema opressor, demonstrando que a ausência de malignidade explícita não equivale à isenção.

A desforra de Cassie é bem-sucedida? Simbolicamente, sim. Embora ela venha a falecer, seu plano derradeiro funciona, conduzindo à prisão dos culpados e assegurando que a história de Nina não seja olvidada.

O que o breviário de Cassie simboliza? O diário é uma tentativa de impor ordem ao caos, de documentar a culpa e de criar um registro contra a omissão coletiva, funcionando como sua prova e testamento.

Por que Cassie abandonou a faculdade de medicina? Seu abandono simboliza como o trauma interrompeu seu futuro e a aprisionou ao pretérito, dedicando sua existência integralmente à missão de retaliação por sua amiga.

O filme é considerado feminista? Sim, é amplamente considerado um filme feminista por sua crítica à misoginia, à cultura do estupro e pela forma como subverte os papéis de gênero na cinematografia.

Qual a mensagem basilar de Bela Vingança? A mensagem central versa sobre a falha sistêmica em tutelar as vítimas e responsabilizar os algozes, e o custo psíquico devastador que essa falha impõe.

O que significa o título Promising Young Woman? O título é irônico e refere-se tanto a Nina, cujo futuro promissor foi destruído, quanto a Cassie, que também imola seu potencial, e aos "jovens promissores" que a sociedade tutela a todo custo.

O filme é baseado em uma história real? Não, é uma obra de ficção, mas foi inspirado por inúmeras histórias verídicas de agressão sexual em campus universitários e pela frustração com a carência de equidade.

Palavras-Chave

Bela Vingança exegese metapsicológica, Promising Young Woman interpretação profunda, reparação simbólica cinema, mecânica da culpa psicologia, desforra psíquica e trauma, trauma sexual em filmes, Carey Mulligan atuação, análise psicológica de Cassandra Thomas, metapsicologia e cinema contemporâneo, cultura do estupro no cinema, poder feminino e retaliação, equidade simbólica e luto, ética da desforra análise, identidade psíquica e trauma, subversão de gênero em Promising Young Woman, abuso sexual e psicologia social, culpa freudiana no cinema, teoria do trauma e reparação, violência de gênero em filmes, memória traumática e cinematografia

Referências Bibliográficas

BADIOU, Alain. Elogio ao Amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HERMAN, Judith. Trauma e Recuperação. Lisboa: Edições Sinais de Fogo, 1992.

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Boitempo, 2004.

KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

KRISTEVA, Julia. Histórias de Amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

NASIO, Juan-David. O Livro da Dor e do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo. São Paulo: Autêntica, 2016.

SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

ŽIŽEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Visite minha loja ou site:

Dan Mena – Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise (CNP 1199, desde 2018 ); Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise (CBP 2022130, desde 2020); Dr. Honoris Causa em Psicanálise pela Christian Education University – Florida Department of Education, EUA (Enrollment H715 / Register H0192); Pesquisador em Neurociência do Desenvolvimento – PUCRS (ORCID™); Especialista em Sexologia e Sexualidade – Therapist University, Miami, EUA (RQH W-19222 / Registro Internacional).


 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page