A Liberdade.
- Dan Mena Psicanálise
- 1 de mar. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 28 de abr.
A liberdade na Psicanálise está inscrita na lógica relacional, com a qual Lacan propõe: ''Tudo é afetado pela dimensão da alteridade, (relações de contraste, distinção, diferença). Se o desejo é o desejo do Outro, se o inconsciente é o discurso do Outro, se o Eu é a imagem do Outro, … a liberdade não é sem o Outro''.

O que é liberdade?
É uma palavra enorme. O que realmente implica; existe a liberdade mesmo?
Como uma idealização da maior importância para o ser humano, vejamos inicialmente alguns conceitos apresentados no decorrer do tempo;
A liberdade na Psicanálise está inscrita na lógica relacional, com a qual Lacan propõe: ''Tudo é afetado pela dimensão da alteridade, (relações de contraste, distinção, diferença). Se o desejo é o desejo do Outro, se o inconsciente é o discurso do Outro, se o Eu é a imagem do Outro, … a liberdade não é sem o Outro''.
Kant, que foi um dos grandes pensadores do Iluminismo, um movimento que revitalizou os ideais de liberdade na Europa dos séculos XVII e XVIII, refere-se a mesma: Libertar o homem da prisão da sua ignorância e mediocridade. Para ele, liberdade é a autonomia para cumprir o nosso dever, conforme às Leis da Natureza; assim, somos senhores de nós próprios e das nossas ações.
Uma das concepções mais radicais de liberdade foi desenvolvida por Jean-Paul Sartre, que acreditava que somos sempre livres, mesmo em situações em que a maioria diria não haver escolha. Para o filósofo, “o homem é liberdade”. O seu ponto de partida do pensamento sobre ela é a ideia de que “a existência precede a essência”. Em outras palavras, o homem primeiro existe, e só depois define o que ele é. Por outro lado, não possui uma essência, ele não é o fruto da criação de um ser superior que determinou a sua natureza e propósito. Assim, o homem primeiro existe no mundo, e só depois define o que será. Segundo ele, “no início não somos nada: só mais tarde, seremos algo, existiremos, segundo o que fizermos de si”. Numa das suas frases sanciona: estamos “condenados a ser livres”.
O que é liberdade, segundo Berlin?
É querer que nossas vidas e decisões dependam de si próprios e não de forças externas. Sermos dirigidos, movidos por nada mais do que o nosso grau de maturidade, e autoconhecimento. Pressupõe, também, a existência de uma faculdade autônoma da vontade do indivíduo.
E para Platão?
Há um consenso em considerar Platão como representante de uma concepção positiva da liberdade, entendida como autocontrole racional. De acordo com esta abordagem, uma pessoa é livre se os seus desejos pragmáticos dominarem os seus irracionais, e os mesmos, determinarem suas ações.
O que diz Hegel; O direito à liberdade é fundado na própria liberdade. Só o exercício efetivo dela o faz possuir tal direito. A liberdade nos torna livres, é um direito, porque o direito já é a própria liberdade.
Me sinto muito confortável em ler Erich Fromm: Amor e Liberdade: A essência humana. Este sociólogo e psicanalista chegou à conclusão de que seres humanos experimentam frequentemente um medo profundo de assumir sua liberdade, onde abdicamos dos nossos direitos a ela. Sua teoria parte da imagem bíblica da expulsão do paraíso. “O ato de desobediência do homem, como uma premissa de liberdade, é o início da razão. O mito, refere-se às consequências do nosso primeiro feito de liberdade, onde a harmonia entre o homem e a natureza foi quebrada. Deus proclama a guerra entre o homem e a mulher, entre a natureza e o homem (…). A liberdade, recentemente conquistada, aparece como uma maldição; liberta dos doces laços do Paraíso, mas não livre de se governar a si próprio”.
Face a este medo original da liberdade que produzimos no paraíso, entregamos nossa responsabilidade por três mecanismos;
Conformidade: Regulamos nossa personalidade, moldada ao que a sociedade prefere e espera dela, sacrificando o verdadeiro Eu.
Autoritarismo: Cedemos o controle de si próprios a terceiros, como uma atitude sadomasoquista.
Destruição: Destruir os outros e, em última análise, o mundo, para que terceiros não nos dominem.
Em outras palavras, construímos um terreno fértil para o totalitarismo, por um lado, o consumismo que nos engana sob uma fuga escapista, por outro, construímos sentimentos de culpa e vergonha, que estão na raiz do medo de exercer a liberdade. Estes, só podem ser transcendidos pelo desenvolvimento do melhor de si mesmo, o que nos torna únicos, no nosso pleno potencial humano: com a capacidade de raciocínio, produção, afetos e amor. O sujeito moderno, em contraste com o medieval, sabe que é o mestre da sua liberdade, no entanto, não a pode desenvolver plenamente, devido a contextos globais que transformaram nosso trabalho, energia e formas de amar. Portanto, sequestrados que fomos, sob certas circunstâncias e conjunturas, convertidos e transformados em produtos, prateleiras ambulantes, objetos e mercadorias. Consequentemente, é o preço que pagamos nesse contexto capitalista, acompanhados de sentimentos de isolamento, fragilização, impotência e angustia, agora, privados dos laços fundamentais que costumavam nos oferecer segurança. Assim, transformamos a liberdade num fardo insuportável, vidas sem significados, da qual muitas vezes queremos nos livrar, delegar ou entregar.
Retornemos a Freud que disse; ''os seres humanos não querem realmente ser livres'', porque toda a liberdade requer responsabilidade, e a maioria de nós tem medo dela. Podemos pensar que muitas vezes o discurso sobre a liberdade permanece estritamente no seu próprio dizer, como uma narrativa. Abandonar um trabalho que nos escraviza, terminar uma relação que não é boa, mudar um hábito, pode ser um passo ainda mais difícil, que muitos de nós tem dificuldades para avançar. Vivemos num mundo regulado pelos mesmos códigos, isto nos mantém de certa forma vinculados, atrelados, o que significa que a maioria das escolhas que acreditamos serem voluntárias, são inconscientemente condicionadas a um meio social, por conseguinte, nossa liberdade é de alguma forma relativa. Poderíamos associá-la à vontade, e isto nos remete à consciência, de modo que se a nossa consciência é limitada e há muito que nela nos escapa, podemos concluir que é tanto mais cerceada e delimitada quanto gostariamos. Se associada ao inconsciente, com a consciência restrita que sabemos nos habita, respondemos de fato a uma ordenação pré-definida, da qual somos todos reféns. A Psicanálise desde Lacan, tem toda uma reflexão sobre a noção de liberdade, acredito particularmente que esta sua frase magistral possui um legado muito assertivo sobre nossa condição: “O homem sonha com o sonho de liberdade, e liberdade não é mais do que um sonho”. Sob diversas perspectivas, quem na minha opinião se aproxima da forma mais contundente sobre nossa contemporaneidade, é um autor pelo qual tenho grande aprecio e admiração, aprendi muito com ele: desde muitos livros Zygmunt Bauman, aborda este tema, especialmente trata da liberdade em "Thinking Sociologically" (Aprendendo a pensar com a sociologia). Editora Zahar, Recomendo.
Seguindo e nos aproximando do final: de uma forma mais prática, cada um de nós enfrenta problemas diários que exigem um reajuste de vida. Quando mudamos de emprego, de casa, iniciamos um aprendizado, divorciamos, casamos, começamos um relacionamento, nos tornamos pais ou mães, somos acometidos por doenças, atravessamos ciclos, envelhecemos. Devemos pensar e ponderar sobre essas relações entre liberdade e dependência como um processo de contínua mudança. Ditas complexidades começam a se apresentar com nossa chegada a este mundo, e terminam, ''hipoteticamente'' com a morte. A sensação que experienciamos ocupa um lugar de que nossa liberdade nunca está completa. Nossas ações são moldadas, forçadas pelas atitudes passadas, somos diariamente confrontados com escolhas que, embora atraentes, são inatingíveis ou quase impossíveis. A liberdade na modernidade tem um custo, varia com determinadas circunstâncias sociais, na medida que procuramos por novas oportunidades, onde essa viabilidade de recomeçar vai ficando mais distante, frustrada, na medida que os ciclos de maturidade se cumprem. Simultaneamente, a liberdade para uns pode ser comprada, ao custo de uma maior dependência de outros. Neste ponto, o papel que os recursos materiais e simbólicos desempenham no processo das escolhas como propostas viáveis e realistas, o que nos conduz a afirmar que nem todas às pessoas usufruem do acesso a eles. Assim, enquanto todas as pessoas são livres e só podem ser livres — somos obrigados a assumir a responsabilidade por tudo o que fazemos. Algumas mais que outras, porque seus horizontes e escolhas de ação são mais amplos, e isso, por sua vez, pode depender da restrição de perspectivas impostas por terceiros. Podemos dizer, que a relação entre liberdade e dependência é um indicador da posição relativa que cada um ocupa na sociedade.
Finalmente, podemos entender o impulso de escapar de uma situação difícil como uma libertação, quando na realidade estamos escravos do medo que ela provoca. A liberdade nunca é total, nem plena, estaremos sempre dependentes de algo, condicionados a alguma situação, pensar de outra forma é negação da ''realidade''. Destarte, estar em sintonia com o nosso desejo, tem a ver com não ceder a ele, abrindo espaço também, para arriscar o máximo possível na forma como ele nos dirige e conduz de acordo com nossos quereres. Tomar conta dele implica em responsabilidade, significa estabelecer seus limites, onde muitas situações jogam em conjunto com o ambiente, para que se mantenham no bom caminho. A liberdade é sempre relativa a muitos outros fatores; nunca somos livres para escolher uma linha exclusiva de ação, independente das causas que rejam a vida psíquica. Uma solução pode ser aplicada nessa gangorra através da análise, onde é possível alcançar pela Psicanálise uma maior compreensão das nossas motivações inconscientes, é assim, dar a melhor resolução possível.
Vamos para a poesia da vida!
Liberdade, de Miguel Torga
— Liberdade, que estais no céu…
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade onipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Uma -ótima semana a todos!
Até breve, Dan Mena. Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 - CNP 1199 Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 - CBP 2022130
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