Às 10 Marcas Traumáticas da Infância.
- Dan Mena Psicanálise
- há 1 hora
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Como os Traumas Influenciam a Vida Adulta

Lições da Infância e Efeitos na Vida Adulta
Imagine uma criança, talvez você mesmo(a), um quintal ensolarado, a bola que vai, a boneca que cai, os pés descalços na grama, o vento carregando risadas que parecem não ter fim. Há uma leveza nesse instante que certamente muitos de nós já vivemos, uma promessa de que o mundo é um lugar seguro, onde o amor é dado e recebido sem esforço. Mas, em algum canto dessa memória, há também uma sombra — um olhar não correspondido, uma palavra dura, um castigo, um ''cala a boca'' ou um silêncio que pesa mais do que deveria. Essas nuvens escuras tão pequenas na infância, crescem e se expandem conosco. Se dissimulam nos cantos da mente, desenhando como amamos, tememos e vivemos o hoje. E, às vezes, nos perguntamos: por que carrego isso? Por que, mesmo adulto(a), sinto o bater de algo que não sei dar nome?
Como psicanalista, já me debrucei diante de incontáveis histórias — principalmente de adultos que, sem saber, ainda dialogam com as crianças que foram. A psicanálise nos instrui que a infância não é apenas um capítulo que fechamos; é a tinta com a qual escrevemos as páginas do livro da vida. Disse Freud, ''o adulto é apenas uma criança que cresceu'' — e, nesse crescimento, carregamos lições, algumas luminosas, outras dolorosas, que retumbam nos relacionamentos futuros, escolhas, e até nos mutismos que evitamos. Mas o que exatamente essas exortações nos ensinam? Como elas configuram o que nos tornamos?
Lucia, uma mulher de 38 anos, chegou relatando quanto a um vazio que ela não sabia explicar. Profissionalmente tinha uma carreira sólida, amigos, uma vida que, aos olhos dos outros, parecia completa. Mas, no seu interior, havia uma inquietação, uma sensação de que algo estava sempre faltando, ausente. Durante nossas sessões, remete a sua infância. Não se lembra de grandes traumas, mas sim de pequenos momentos. Sua mãe elogiava suas notas, mas nunca seu esforço. Seu pai estava sempre ocupado. Isso a fazia sentir que precisava ser ''perfeita'' para ser notada. Esses fragmentos, quase imperceptíveis da época, se tornaram bases de uma autocrítica interna feroz que a impedia de se sentir suficiente e realizada. Claramente, ela não é um caso isolado, senão um espelho vivo de muitos.
Essa fase infantil, é a arena onde o inconsciente começa a ensaiar seus primeiros passos.

Cada interação, cada afeto e ausência vividas como infantes, deixam lacunas não preenchidas, marcas indeléveis e registros importantes para o futuro desenvolvimento. A ''teoria do apego'', mostrou como os primeiros vínculos estabelecem nossa capacidade de confiar — ou de duvidar — do mundo é dos ''outros''. Mas aqui reside a questão que quero deixar no ar: e se as lições da infância não forem só balizas demarcatórias, mas também chaves? E se, ao serem rememoradas, pudéssemos não somente entender quanto as nossas dores, angústias e traumas, senão, serem utilizadas como mecanismos de transformação?
Neste artigo, vamos embrenhar nessas experiências — das mais sutis às intrinsecamente elaboradas — e de que forma influenciam nossa vida adulta. Vamos penetrar aspectos clínicos, filosóficos e psicanalíticos. Faremos ponderações sobre Freud, Jung, Winnicott e Lacan, entre outros, que tanto contribuíram para aportar conhecimentos nessa área. Vamos entender como essas preleções nos talharam. Mais importante, veremos como podem ser usadas para superar e crescer. Porque, já dizia Jung, ''o que não enfrentamos em nós mesmos, encontraremos como destino''.
Quero que você pense, por um momento, em uma lembrança da sua infância. Não precisa ser algo grande. Pode ser algo simples, como segurar a mão de alguém ou esperar por uma exaltação merecida que não chegou. O que essa memória diz sobre você hoje? Não responda agora. Deixe essa pergunta flutuar, como sementes que plantamos juntos. Ao longo destas páginas, vamos desenterrar esse cultivo, regá-las com ponderações e ver o que pode florescer delas.
“A infância não é algo que deixamos para trás; é um mapa que nos guia, às vezes sem perceber.” - Dan Mena.
A criança dentro de nós nunca deixa de brincar, de sonhar e buscar sentido. E é nesse fruir, no diálogo que surge entre ''quem fomos e quem somos'', que encontraremos respostas. Então, vem comigo, podemos reescrever essa história. Boa leitura.

O Peso do Perfeccionismo
Meu pai era mecânico, quando criança, eu o observava organizando a oficina com uma precisão quase obsessiva. Ferramentas alinhadas no painel, carros aprumados, tudo em seu devido lugar — para ele, ordem era controle — e controle significava segurança. Minha mãe, ao contrário, vivia no caos criativo, com projetos inacabados sempre espalhados pela casa. Cresci entre esses dois polos, absorvendo, sem perceber, um código invisível: crenças, medos e expectativas que, anos depois, jogaram seus dados. Esse ''código invisível da infância" é essencial para entender o tema, porque expõe claramente como padrões inconscientes, enraizados na educação parental e nas dinâmicas familiares vão ditar nossos comportamentos amadurecidos. Ele conecta o que vivemos quando infantes aos desafios que enfrentamos hoje, como o perfeccionismo que nos paralisa ou o medo da rejeição que nos faz buscar por aprovação e afirmação. Entender isso não é apenas um exercício de autoconhecimento — é um caminho para transformar essas heranças pregressas em escolhas conscientes.
Jung já dizia: "Até que você torne o inconsciente consciente, ele dirigirá sua vida e você o chamará de destino."
"Nossas crises adultas são gritos silenciosos de uma criança que ainda busca ser vista."- Dan Mena.
Outro padrão comum é o medo de rejeição. Pense em Maria, 35 anos, admirada por todos, mas aterrorizada por ser abandonada. Nos relacionamentos, ela se anula para agradar. Sua infância revelou o porquê: uma mãe deprimida, incapaz de oferecer afeto estável, isso a ensinou que o amor era condicional. Assim, ela aprendeu a ser fantasiosamente "perfeita" para merecer reparo, carregando esse peso enorme até a vida adulta.
"O amor que busco é realmente amor, ou apenas um elo do passado?" - Lacan.
"Rejeição é o semblante de um amor que nunca se sentiu seguro." - Dan Mena.
A Herança das Expectativas
Esses padrões não são apenas sobre pais e filhos, eles atravessam gerações. Famílias onde o silêncio sobre emoções é a norma, crianças aprendem que sentir é perigoso, que vulnerabilidade é fraqueza. Adultos, no entanto, lutam para se conectar, para expressar o que sentem. É o caso de Pedro, que cresceu ouvindo: "Homens não choram." Hoje, ele se sente isolado, incapaz de compartilhar suas dores. Seu código familiar o ensinou a engolir as emoções, mas o preço foi alto. Winnicott falava da importância do "ambiente facilitador" — um espaço onde a criança pode ser ela mesma. Quando esse lugar é rígido, o adulto vai carregar esse engessamento. Por isso não é incomum escutar: ''eu sou assim mesmo(a)'' ''eu não vou mudar'', etc.
"Expectativas familiares são como formas prontas: podem nos dar estrutura, mas também nos aprisionam." - Dan Mena.
Refazer esse percurso não é fácil, mas é possível. Começa com a consciência: olhar para trás, não para culpar, mas para entender. Na análise, ou na reflexão pessoal, podemos questionar: ''Isso é meu, ou algo que herdei?""A criança que não foi amada não pode amar a si mesma." Mas, pode aprender — e nós também.'' - Alice Miller.
"A validação que não recebemos na infância se torna o guia inconsciente que buscamos no mundo afora." - Dan Mena.

O Silêncio que Fala
Famílias que evitam conflitos ou escondem segredos criam criptografias de silêncio. Crianças sentem a tensão, mas não a nomeiam. Adultos, vivem com uma ansiedade que não tem explicação — até perceberem que carregam uma codificação de palavras nunca pronunciadas. O silêncio, às vezes, é o mais alto dos professores.
Quais códigos você carrega? Que crenças da sua infância ainda ditam sua biografia?
A criança condicionada a buscar aprovação a todo custo se torna um adulto que, mesmo muito bem-sucedido, passará sua vida percebendo uma constante inadequação. Essas primeiras experiências com o mundo externo vão costurar muitas das suas fantasias e angústias, tais, vão persistir na maturidade transformados em padrões e hábitos comportamentais.
Brincadeiras de Criança, Batalhas de Adultos
Aos sete anos, eu adorava brincar de esconde-esconde com meus primos(as) e amigos — a adrenalina de encontrar o esconderijo ideal, o remanso tenso que se seguia enquanto esperava ser descoberto e logo a disparada até o ponto de batida. Às vezes me camuflava tão bem que ninguém me encontrava, e o que começava como uma vitória infantil mudava para um vazio inquietante: e se eu ficasse perdido ali para sempre, esquecido no canto escuro do jogo? Esse medo sutil, apavorante, quase apagado pelo tempo, reapareceu nas minhas relações adultas, onde eu oscilava entre me fechar emocionalmente, como quem se esconde, e a ânsia por ser lembrado. Talvez você já tenha sentido isso: os laços afetivos são assim, como um tabuleiro invisível, onde jogamos sem perceber, as partidas inacabadas da infância.
Isso não é mera coincidência, os primeiros vínculos — com pais ou cuidadores — desenham os contornos de como amamos, confiamos e até tememos. O que vivemos nessa fase não se dissipa como névoa; pelo contrário, se torna uma bússola, que direciona nossos passos inconscientes. Se o afeto primordial nos chegou com lacunas, passamos boa parte da vida tentando preencher esse amor que buscamos. Se veio com rigidez ou frieza, podemos confundir limite com cuidado, ou distância com proteção. Assim, as brincadeiras leves de outrora se metamorfoseiam em batalhas adultas — disputas internas por segurança, reconhecimento ou simplesmente pelo direito de sermos quem somos, sem máscaras.
Amor, rejeição ou reparação reverberam nas escolhas que fazemos décadas depois. Repetimos esses roteiros antigos, talvez na esperança de reescrever o passado, de consertar o que se quebrou, de sermos finalmente acolhidos como merecemos. Esse "brincar" como um espaço sagrado na infância, é um terreno onde a vulnerabilidade encontra acolhimento. Sem esse solo firme, o adulto pode buscar proteção em ilusões frágeis ou fugir dela por medo de se ferir outra vez, como quem evita a brincadeira por receio de perder.
Esses paradigmas não são falhas ou defeitos; são tentativas corajosas de sobrevivermos emocionalmente, esculpidas em nós quando o mundo parecia grande demais e éramos pequenos ainda para fazer frente. O segredo está em ir de frente com gentileza, como quem recebe um velho amigo. Esses são os ''games'' que aprendemos desde cedo, regras gravadas em silêncio, mas que podemos com paciência e consciência, aprender a desaprender.
"O amor que não cicatrizou na infância, se torna a ferida que tentamos curar em cada abraço que recebemos." - Dan Mena.
No entanto, ao compreendermos esses arquétipos, ganhamos o poder de transformar o roteiro do filme. Não devemos culpar os pais, as circunstâncias, condições financeiras ou simplesmente o tempo. Precisamos reconhecer que, mesmo sendo ajustados por todos esses condicionantes, não somos reféns eternos dessa adequação.
"Não sou o que me aconteceu; sou o que escolho me tornar." - Jung.
"As relações afetivas são o roteiro onde podemos, finalmente, ser os diretores da nossa produção." - Dan Mena.
Que papeis você repete, talvez sem notar, como um ator preso a um script antigo?
''O apego seguro na infância é o alicerce para relações adultas saudáveis; sem ele, buscamos compensações que nem sempre nos satisfazem." - Bowlby.

Biologia das Memórias
O cérebro de uma criança é como um escultor incansável, que se esculpe a cada experiência, a cada emoção. Durante esse processo, desenvolvemos uma capacidade extraordinária chamada de ‘’plasticidade neural’’, ela permite que a articulação e adaptação possa ser alterada em resposta ao mundo exterior. Essa flexibilidade é a chave para entender por que as memórias deste estágio — sejam elas de alegria ou de dor — se fixem tão cavadamente.
No coração desse recurso está o ‘’hipocampo’’, uma pequena estrutura no cérebro que funciona como um registrador de traquejos. Ele é responsável por capturar os eventos que vivemos, e os transforma em memórias que podemos acessar posteriormente. Na infância, o hipocampo está especialmente ativo, gravando delicadamente os detalhes do que acontece com uma clareza impressionante. É por isso que o cheiro de um bolo assado na casa da avó ou o som de uma tempestade noturna podem permanecer vívidos por décadas. Mas, ele não grava apenas os fatos, ele armazena o ‘’contexto emocional’’ de cada momento, e é aí que entra outro protagonista insubstituível: a ''amígdala''.
Amígdala: A Tinta Emocional
A amígdala é o centro emocional do cérebro, ela dá cor e intensidade às memórias, como um pintor que mistura tons. Quando vivemos algo marcante — um momento de pura alegria, como ganhar um presente esperado, ou um trauma, como uma separação dolorosa —, a amígdala entra em ação. Ela associa essas emoções fortes, criando conexões neurais mais robustas. Quanto mais intensa a sensação, mais marcada permanece no cérebro. Situações de grande estresse podem levar a uma ‘’hiperativação da amígdala’’, o que faz com que memórias traumáticas sejam estipuladas com uma força especial. Isso explica por que, anos depois, um som, uma agressão sexual ou uma imagem ''X’' possa desencadear uma reação visceral, como se o passado voltasse à tona. Já as associações positivas, como o afeto de um cuidador, fortalecem os circuitos neurais que promovem a defesa e resiliência.
Por Que Algumas Memórias Nos Perseguem?
Nem todas as memórias têm o mesmo peso. As que carregam uma carga afetiva ou emotiva intensa — criam trilhas neurais mais fortes, como sulcos fundos em um caminho de lama. Isso ocorre porque as emoções liberam substâncias químicas, como a adrenalina e o cortisol, que reforçam as conexões neuronais. Assim, um evento traumático pode se transformar em uma sombra persistente, enquanto uma memória feliz pode se tornar um refúgio interior.
Curiosamente, esses arquivos não ficam congelados no tempo. Elas podem ser reativadas ao longo da vida, especialmente quando algo no presente tem similitude com o passado. Um cheiro, uma palavra ou uma situação pode reacender a amígdala, trazendo à tona não apenas a lembrança, mas a emoção que a acompanha. É como se o cérebro dissesse: "Isso já aconteceu antes, preste atenção." Embora a infância seja o auge da plasticidade cerebral, o cérebro adulto não perde completamente essa capacidade de se transformar. Isso significa que memórias antigas, mesmo as mais dolorosas, podem ser reprocessadas. Há uma criança dentro de cada adulto. Não como metáfora, mas como realidade psíquica – uma presença viva que carrega memórias, dores e desejos nunca plenamente expressos. Quando essa criança é repetidamente ignorada, calada ou invalidada, ela não desaparece. Aprende, sim, a falar em entrelinhas: através do corpo que treme, da mente que se angustia, do coração que acelera sem motivo aparente. A ansiedade contemporânea, em muitos casos, é esse símbolo – a linguagem distorcida de emoções infantis que nunca tiveram permissão para existir.
Quantas vezes uma criança ouve, ao chorar: "Isso não foi nada", "Você está exagerando", "Para de frescura" Essas frases, aparentemente inocentes, carregam uma mensagem: "O que você sente é irrelevante". O problema é que emoções não desaparecem quando negadas – elas se armazenam. Como um rio represado, a energia emocional bloqueada busca sua saída. Pode vir como tensão muscular crônica, insônia ou aquela sensação difusa de que "algo ruim está prestes a acontecer". Adultos que foram crianças não ouvidas desenvolvem uma hipervigilância inconsciente – estão sempre alerta, como se precisassem se proteger de um perigo que não conseguem nomear.

A Ditadura do "Seja Forte"
Algumas famílias operam sob um regime emocional implacável. Chorar é proibido. Medo é vergonhoso. Raiva, então, nem se fala. A criança aprende rapidamente que, para ser amada, precisa ser uma versão inatingível de si mesma(o) – tranquila(o), obediente, "fácil de lidar".
O resultado? Um adulto que:
Sente culpa ao dizer "não"
Desconhece seus próprios limites
Vive em estado constante de esgotamento (porque manter a máscara cansa)
Desenvolve pânico diante de conflitos
A ironia cruel é que, quanto mais a pessoa tenta controlar suas emoções para ser "forte", mas frágil se sente por dentro.
O Paradoxo da Criança Invisível
Há um fenômeno intrigante: pessoas que sofreram negligência emocional na infância se tornam adultos extremamente atentos às necessidades alheias. São os que sempre perguntam "está tudo bem?", os que antecipam desejos, os mediadores de conflitos.
Por trás dessa aparente generosidade, porém, mora uma criança aterrorizada: "Se eu cuidar de todos, talvez alguém finalmente me enxergue". É uma estratégia de sobrevivência emocional que, na vida adulta, se transforma em ansiedade de desempenho e medo patológico da rejeição.
Resgatando a Voz Perdida
Se curar não significa regredir, mas resgatar. É fazer as pazes com aquela parte de si que ainda espera permissão para existir. Alguns caminhos:
Reaprender a linguagem das emoções – Identificar e nomear sensações corporais ("onde no meu corpo eu sinto o medo?").
Exercitar o "não" como ato de amor-próprio – Começar por situações pequenas e seguras.
Cultivar a auto-observação sem julgamento – Se perguntar:: "O que ‘’EU’’ realmente sinto sobre isso?" antes de consultar as expectativas alheias.
Revisitar memórias com novos olhos – Entender que a criança que fomos merecia acolhimento, não repreensão.
A ansiedade, nesse prisma, deixa de ser apenas um transtorno a ser eliminado. Ela se apresenta como um sinal vital – o último recurso de uma voz interior que insiste em ser ouvida, mesmo depois de tantos anos de mordaça. Quando essa voz finalmente encontra seu espaço, algo mágico acontece: o adulto descobre que pode ser, ao mesmo tempo, forte e sensível, independente e carente, vulnerável e incrivelmente resiliente. Descobre, enfim, que a verdadeira maturidade não está em calar a criança que fomos, mas em dar a ela o que sempre precisou: atenção, respeito e um recinto seguro para existir.

O Impacto da Ausência Paterna/Materna na Arquitetura do Amor
Os pais são nossos primeiros espelhos, eles nos mostram quem somos e como o mundo funciona. O pai, muitas vezes, representa a lei, a estrutura, o limite; a mãe, o acolhimento, o afeto primal. Quando um deles falta, o fino equilíbrio se rompe. Lacan, em seus seminários, falava do "Nome-do-Pai" como um ícone simbólico que organiza o psiquismo, dando ordem ao caos do desejo. Sem essa figura — ou sua função emblemática —, crescemos sem um norte, buscando nos outros uma âncora que nunca encontramos, assim, podemos ficar à deriva.
A ausência materna, por outro lado, pode deixar um vácuo no núcleo do afeto. A mãe como a primeira fonte de amor e reparação, quando não está presente, seja por abandono, negligência ou sobrecarga emocional. Nesse desamparo, internalizamos um vazio que pode se traduzir, na vida adulta, em uma fome insaciável por validação ou, paradoxalmente, criamos uma muralha contra a intimidade, como se o amor fosse sinônimo de risco.
"A ausência de um pai ou de uma mãe não é apenas um espaço vazio; é uma pergunta sem resposta." - Dan Mena.
A ausência parental não determina nosso destino, mas desenha os contornos de como iremos atuar no amor. Quem cresce sem um pai pode buscar figuras de autoridade em parceiros, projetando neles uma necessidade de orientação que nunca foi suprida. Ou, ao contrário, pode rejeitar qualquer forma de limite, temendo ser controlado(a). A ausência da mãe, pode levar a uma busca contínua por acolhimento — ou a incapacidade de se conectar, como se confiar fosse abrir a porta para uma antiga ferida.
A segurança emocional nasce do cuidado consistente na infância. Sem ele, desenvolvemos estilos de apego inseguros — ansiosos, evitativos ou desorganizados —, que se manifestam em relacionamentos adultos como o ciúme excessivo, personalidade controladora, distanciamento emocional ou uma confusão entre proximidade e fuga. Essas são as bases quebradas, rachaduras que produzem efeitos distorcidos: amores que, embora intensos, muitas vezes carecem de estabilidade.
"O amor que não encontramos na infância se torna um enigma que tentamos decifrar em cada abraço." - Dan Mena.
"As raízes quebradas não condenam a árvore; com cuidado, ela ainda pode florescer e se sustentar." - Dan Mena.
"A qualidade dos primeiros vínculos determina a confiança que depositamos no mundo; sua ausência deixa cicatrizes que buscamos reparar ao longo da vida." - Bowlby.
"A mãe é o primeiro objeto de amor e ódio; sua ausência cria uma lacuna que o psiquismo tenta preencher, muitas vezes com dor." - Melanie Klein.

Polarização, Culpa e Nostalgia: Cartografia do Desejo na Maturidade
A melancolia não é um mero saudosismo, mas uma mensagem afetiva. Ela mapeia os nossos lugares mais simbólicos onde projetamos anseios por inteireza, segurança ou conexão que o presente parece negar. A "nostalgia reflexiva" não busca reconstruir o passado, mas habitar seus lugares obscuros como espaços de significado. Como crianças corríamos em campos vazios, o cheiro de pão saindo do forno da avó, ouvíamos atentamente o sussurro das conversas familiares à noite — tudo se tornava metáfora de um tempo em que a vida parecia coerente, e fazia todo o sentido.
Essa construção, porém, é antagônica: ao mesmo tempo que a saudade nos une a uma sensação de pertencimento, também nos afasta da realidade de um multiverso do que realmente vivemos. O passado é editado, e as cores desbotadas desse cotidiano ganham tonalidades épicas.
A Culpa: Sombra da Consciência Ética
Se a taciturnidade pinta o nosso passado com cores suaves, a culpa o atravessa com perguntas incômodas. Na maturidade, ganhamos uma lente exacerbadamente crítica para revisitar não apenas as falhas alheias — pais distantes, silêncios familiares, promessas não cumpridas —, mas também, nossas próprias omissões enquanto filhos, irmãos ou simplesmente crianças em aprendizado. A culpabilidade surge como um diálogo entre o "eu que experienciou" e o "eu que julga", uma divisão mediada pela inocência de quem não compreendia as regras do jogo e a responsabilidade de quem agora as domina.
Trazer à tona essa autorreflexão, embora seja doloroso, é um sinal de primazia emocional. A culpa é um "debate íntimo com o irreparável". Ela vem para nos lembrar que, mesmo sem intenção, fomos agentes e vítimas de narrativas que deixaram suas marcas — e que o conserto, quando possível, e é, está no reconhecimento honesto dessas cicatrizes.
A Cultura do Retorno e a Tirania da Felicidade Perdida
Vivemos na era onde a nostalgia se comercializa, (playlists de décadas passadas, modas retrô, séries que resgatam mitologias infantis) enquanto nos cobra um comprazimento ininterrupto. Redes sociais ampliam essa dicotomia: de um lado, os ‘’throwbacks’’ que glorificam o passado; de outro, a pressão por resenhas de superação, onde até a infância deve ser "resignificada" em nome do crescimento pessoal.
Essa dinâmica cultural intensifica a assimetria entre culpa e nostalgia. Se antes o passado era um território privado, hoje ele é performático e comparativo. A pergunta é: "minha infância foi boa o suficiente?" isso se torna o tal do tribunal interior, onde julgamos não apenas nossos enredos, mas os dos outros também. A ânsia por uma cura definitiva da "criança ferida" pode, ironicamente, reforçar a sensação de que há algo irremediavelmente esfacelado em nossa origem.
Maturidade: A Arte de Habitar o Cinza
A verdadeira sensatez não está em escolher entre esses pólos acima, mas em reconhecer que ambos são faces da mesma moeda: o desejo de dar sentido àquilo que nos constitui. Abandonar a busca incoerente pela inalcançável perfeição — seja na infância que tivemos, seja na que gostaríamos de ter tido. Integrar esses opostos exige um olhar generoso para a ambiguidade que nos compõe. O pai autoritário pode ter sido, também, o contador de histórias que nos ensinou a amar a literatura. A mãe ausente, talvez tenha aberto espaço para autonomias precoces que nos ergueram como resilientes e combativos(as). Não termos sido os "filhos ideais" pode ser revisitado com toda nossa compaixão pela criança que carregamos — cheia de medos e perguntas sem respostas.

Do Preto e Branco ao Caleidoscópio Existencial
A infância nunca será um capítulo encerrado, mas um texto vivo, reescrito a cada fase da vida na medida que avançamos. Na vida adulta, ganhamos a chance de reler esse texto não como juízes(as), mas como tradutores experientes que decifram nuances antes ignoradas. A melancolia nostálgica, despojada de suas idealizações, se transforma em gratidão pelo que foi possível viver. A culpa, desarmada de autopunição, será a reparação simbólica — seja através do perdão, da arte ou do cuidado com as novas gerações.
O espelho da maturidade, portanto, não reflete imagens estáticas. Ele nutre esse caleidoscópio quântico onde passado e presente se fundem, criando padrões sempre novos e bem-vindos. Aceitar esse hermetismo da nossa humanidade, é entender que a criança que fomos não precisa ser redimida ou glorificada, apenas acolhida como parte de uma caminhada em curso ao infinito. E nesse movimento — de abraçar a ambiguidade do ser —, onde descobrimos que crescer não é deixar a infância para trás, mas aprender a caminhar com ela, em todas as suas cores incríveis.
As 10 Marcas Traumáticas da Infância
1. Abuso físico ou sexual
Uma invasão do psiquismo infantil, muitas vezes reprimida. Na vida adulta, pode surgir como desconfiança, medo de proximidade ou impulsos destrutivos, fruto de defesas como a dissociação.
2. Negligência emocional
A falta de afeto cria um vazio inconsciente. Adultos buscam validação constante ou se fecham emocionalmente, presos entre negação e idealização.
3. Divórcio ou separação dos pais
A ruptura familiar abala o equilíbrio edípico, gerando culpa ou medo de abandono. Relacionamentos futuros carregam essa fragilidade inconsciente.
4. Bullying
Fere a autoimagem da criança, deixando cicatrizes narcísicas. Na vida adulta, pode se manifestar em ansiedade social ou tentativas de compensação, como busca por controle.
5. Perda de um ente querido
Um luto não elaborado vira melancolia, fixando o adulto na dor reprimida. Conexões afetivas são temidas, como se cada vínculo repetisse a perda.
6. Doenças graves ou hospitalização
Vividas como ataques à integridade psíquica, geram ansiedades somáticas ou fobias. O corpo adulto vira palco de conflitos inconscientes.
7. Violência doméstica
A identificação com agressor ou vítima molda padrões de agressividade ou submissão. Reprimido, o trauma reaparece em laços disfuncionais.
8. Abandono
Uma ferida narcísica que gera desvalia. Adultos oscilam entre dependência afetiva e isolamento, protegendo um ego frágil.
9. Mudanças frequentes de casa ou escola
A instabilidade rouba o senso de pertencimento. Na vida adulta, surge como dificuldade de adaptação ou fuga de bases sociais estáveis.
10. Expectativas irrealistas
A pressão fortalece um superego rígido, levando à autocrítica severa. Adultos enfrentam ansiedade e baixa autoestima, perseguidos por um ideal fantasiosamente inatingível.
Todos esses fatores apontados acima, quando validados, permanecem escondidos no inconsciente, influenciando o adulto de maneira silenciosa, mas poderosa. A psicanálise oferece um caminho para escutá-los e guiá-los para a transformação positiva.

F.A.Q - Perguntas Frequentes para o Tema O que é a "criança interior" na psicanálise?
→ É um conceito que representa as memórias, traumas e vivências da infância armazenadas no inconsciente, influenciando comportamentos, medos e relacionamentos na vida adulta.
Como os traumas infantis se manifestam na fase adulta?
→ Podem surgir como ansiedade, padrões autodestrutivos, dificuldade de confiança ou repetição de dinâmicas disfuncionais em relacionamentos.
O que diz a teoria do apego de John Bowlby?
→ Explica como os vínculos afetivos estabelecidos com cuidadores na infância moldam a capacidade de formar relações íntimas e seguras na vida adulta.
Qual o papel dos "objetos transicionais" (Winnicott) no desenvolvimento?
→ São itens (ex.: um cobertor) que ajudam a criança a lidar com a separação da mãe, servindo de ponte entre o mundo interno e externo.
Como a educação autoritária afeta a vida adulta?
→ Pode gerar adultos com tendência à autocobrança excessiva, medo de falhar ou dificuldade em expressar autonomia.
O que é o "estádio do espelho" de Lacan?
→ Fase em que a criança reconhece sua imagem no espelho, marcando o início da construção da identidade e da percepção de si como "outro".
Por que alguns adultos idealizam a infância?
→ Mecanismo de defesa para evitar lidar com traumas reprimidos, criando uma narrativa nostálgica que oculta sofrimentos reais.
Como a falta de afeto parental impacta a autoestima adulta?
→ Pode levar à busca compulsiva por validação externa, insegurança em relações amorosas ou sentimento crônico de inadequação.
O que são "mecanismos de defesa" na infância segundo Anna Freud?
→ Estratégias inconscientes (ex.: repressão, negação) usadas pela criança para lidar com conflitos emocionais, perpetuadas na idade adulta.
Como a psicanálise explica o medo de abandono em adultos?
→ Geralmente está ligado a rupturas traumáticas na infância, como separação dos pais ou negligência emocional.
Qual a relação entre bullying na infância e ansiedade social adulta?
→ Experiências de humilhação podem gerar crenças de inferioridade e hipervigilância em situações sociais.
O que é "feminicídio psicossocial" (Barbosa, 2019)?
→ Refere-se a violências estruturais de gênero internalizadas desde a infância, naturalizando opressões que culminam em agressões extremas.
Como a arte pode ressignificar traumas infantis?
→ Através de terapias expressivas (ex.: pintura, escrita), que acessam memórias inconscientes e permitem reconstruir narrativas dolorosas.
O que é a "criança bem-dotada" de Alice Miller?
→ Crianças que reprimem suas necessidades para atender às expectativas dos pais, tornando-se adultos com dificuldade de reconhecer próprios desejos.
Por que alguns adultos repetem padrões tóxicos dos pais?
→ Por identificação inconsciente com figuras parentais ou pela crença de que merecem dinâmicas abusivas, aprendidas na infância.
Como a neurociência explica a fixação de memórias traumáticas?
→ O hipocampo registra eventos emocionalmente intensos da infância, que são reativados em situações similares na vida adulta.
O que é "reparentalização"?
→ Processo de acolher a própria criança interior, oferecendo a si mesmo o cuidado e validação que faltaram na infância.
Como a literatura universal retrata a infância e a maturidade?
→ Obras como "O Morro dos Ventos Uivantes" mostram como traumas infantis alimentam obsessões e conflitos adultos.
Qual a crítica de Jung à visão freudiana da infância?
→ Jung amplia a análise para além do individual, incluindo arquétipos coletivos que influenciam a formação da personalidade.
É possível "reescrever" as lições da infância na fase adulta?
→ Sim, através de terapias, autoconhecimento e reconstrução de vínculos, é possível ressignificar traumas e criar novos padrões emocionais.
Referências Bibliográficas
Freud, Sigmund – A Interpretação dos Sonhos (1900, Editora Imago)
Freud, Sigmund – O Eu e o Isso (1923, Editora Imago)
Jung, Carl Gustav – O Inconsciente Pessoal e Coletivo (1959, Editora Vozes)
Klein, Melanie – A Psicanálise das Crianças (1932, Editora Imago)
Winnicott, Donald W. – O Brincar e a Realidade (1971, Editora Martins Fontes)
Lacan, Jacques – O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1973, Editora Zahar)
Erikson, Erik H. – Infância e Sociedade (1950, Editora Zahar)
Bowlby, John – Apego e Perda (1969, Editora Martins Fontes)
Miller, Alice – O Drama da Criança Bem-Dotada (1979, Editora Paz e Terra)
Fromm, Erich – A Arte de Amar (1956, Editora Zahar)
Horney, Karen – Neurose e Crescimento Humano (1950, Editora Martins Fontes)
Nasio, Juan-David – O Livro da Dor e do Amor (1996, Editora Zahar)
Kehl, Maria Rita – O Tempo e o Cão: A Atualidade das Depressões (2010, Editora Boitempo)
Birman, Joel – Arquivos do Mal-Estar e da Resistência (2016, Editora Civilização Brasileira)
Costa, Jurandir Freire – Sem Fraude nem Favor: Estudos sobre o Amor Romântico (1998, Editora Rocco)
Safra, Gilberto – A Po-ética na Clínica Contemporânea (2004, Editora Ideias & Letras)
Dolto, Françoise – A Imagem Inconsciente do Corpo (1984, Editora Perspectiva)
Roudinesco, Elisabeth – Por que a Psicanálise? (1999, Editora Zahar)
Figueiredo, Luís Cláudio – Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética das Práticas (2007, Editora Vozes)
Dunker, Christian Ingo Lenz – Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros (2015, Editora Boitempo)Calligaris, Contardo – A Adolescência (2019, Editora Publifolha)
Alves, Rubem – Conversas com Quem Gosta de Ensinar (1980, Editora Loyola).
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Membro Supervisor do Conselho Nacional de Psicanálise desde 2018 — CNP 1199.Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise desde 2020 — CBP 2022130.Dr. Honoris Causa em Psicanálise pela Christian Education University — Florida Department of Education — USA. Enrollment H715 — Register H0192.
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